quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Hoje olhei pelo buraco de uma fechadura. Ela vivia procurando lugares para mudar. Ela havia posicionado seus vultos estrategicamente frente ao que podemos ver. Lá fora notícias do Ebola em Serra Leoa, relógios de corda, o negro do carpete, a conta de luz, o telefonema dos bancos, currículos, vitórias-régias de plástico, balas não deflagradas, bandeiras, todas as coisas inúteis de uma sociedade de bichos.  Todos sabem que uma fresta de vida em festa não é exatamente uma vida. Todos sabem que existem fendas mais densas que as de metal. Todos procuram porta-retratos para presentear o ego e soltam pum chamado flatulência para amainar o impacto. Resta conhecer o caos dos 3x4, resta cortar o coração para ao menos ver que há sangue, resta retirar a assepsia do sexo, reorganizar tabus na prateleira. Eu poderia te ligar para trocar as chaves. Considero que me machucar faz parte do primeiro contato com a floresta. Todos sabem que uma fresta de vida em festa não é exatamente uma vida. Todos sabem dos recortes. Gastei um dia da minha vida riscando fósforos e descobri o quanto simbolizam. Todos sabem das nuvens inquietas e mesmo os jardineiros possuem monstros mitológicos. Há intensa vida subaquática. Portanto, só me interessam relações existenciais de fato. Cativar para que se não for para ordenar o caos? Todos sabem que copos plásticos são inúteis porque tocar um corpo é uma coisa muito sagrada. Devo decretar extensos rituais a partir de agora, não quero mais tomar uma cerveja com gosto de sexo e acordar para a realidade das coisas da vida. Ela parece tão interessante aqui da fechadura. Mistério saber onde larguei a chave. 

domingo, 2 de agosto de 2015

Cantares de chuva e vento

Na minha aldeia costumo abraçar a chuva
Sempre que o céu é baço tenho o brilho das pérolas
Antes fulgurante era o Ser em sentido lato
Quando podia alcançar suas constelações de dentro

Ando em portas candentes, esguias na curvatura
Das ladeiras esquecidas de amor e fartas de pés
Minha aldeia é o mundo e eu, muda, ainda percebo
Parcas belezas de vidro que guardo para enfeitar os peixes

Na nossa aldeia morta a chuva de pedras d'água
É cortina que só abre com a ponta e o meio dos dedos
Cada gota cadente desse tecido sagrado
É alegria das plantas e das crianças pequenas

Na minha aldeia tem vezes que eu sou a Própria
Água elemental que afoga e germina a vida
Lavo as roupas da casa, a fachada das igrejas
Turvo o fundo de areia. Sou do céu quando me (in)vento

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Traduttore

I

Pena que te assustes com poemas
Poemas assombram porque denotam
O que de eterno há nas inconstâncias
O que nos fere é leve e não queremos
Perpetuar com o peso de uma pedra

Talvez fujas de mim porque somente
Podemos interpretar nossas pegadas
Pisando falso porque num corpo novo
Tudo é apenas  estranhamento

O problema é que o estranhamento todo
Nasce de saber que tocar um outro
Não é uma pedra que se toca, um musgo
Que se arranca do muro com a unha
                                                    e pronto

É tocar um caminho, uma trajetória
É  tocar num ponto o universo inteiro
Gracias a la vida porque naquela noite
Topei fronteiras com os teus ossos. 

terça-feira, 23 de junho de 2015

Verona

Meu coração está limpo,
Capinado
Meu coração bate certo
Vacinado

Minha intenção altaneira
Lançou o anátema
Desalojou o amor

Nesta prece alvissareira
Bebo o suco da videira
Para brindar o mistério

Meu coração latino
Nesse poema ladino
Não entende Shakespeare

Atirou na cotovia
Meu coração, quem diria!
Acha Julieta chata

A musa é morta
O poema é vivo
Meu coração está pronto.


terça-feira, 26 de maio de 2015

Cinza


Um frio passa pela porta
Vem. dos corredores da cidade
Tubos de ar carregado
Pó. que cria crises alérgicas

Causa, além da tosse,
Medo. do destino da humanidade
Medo de fecharem toda cor
E apagarem o céu

Há milhares
Milhões de portas
Semiabertas
Abertas
Escancaradas

Em milhares
[Não milhões] de casas
Há livros mastigando histórias silenciosas

Que valerá a produção do homem e da mulher?
Ou do ser sem binarismos?
Sacar a humanidade da beira do abismo
É tirar-lhe a voz e o sentido da condição

Pois na angústia nos prendemos
Sim, nos balançamos
É, a angustia dá vertigem

Mas distrai.

Dúvida

Seus olhos me causam impacto profundo
Deveria te agradecer porque agora
Me aprofundei  em algo na vida?

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Bicicleta

Sempre foi difícil cochilar
Os obuses são lançados
A cada vez que piscamos os olhos
Eles são lançados
Enquanto o ósculo santo
É ofertado nas madrugadas
Por discípulos de Madame Satã

Sempre foi difícil andar no átrio
De pedra ou de carne, é difícil
Existir e encarar os nossos ossos
Armados como as constelações

Eu sei que corremos de facas
Como os peixes correm de focas
No gelo ártico polar e tudo isso
É uma luta pela sobrevivência
Uma luta entre aqueles que não
São considerados da mesma espécie
Essas guerras que nos separam
Batalhas sangrentas de dentro
Nos fazem esquecer que sangramos
Como galinhas em bacias de metal.